Poucas compulsões de
consumo são tão bem vistas socialmente quanto o desejo de acumular livros. Ao
contrário dos admiradores de sapatos, perucas, miniaturas ou outros bens de
consumo supostamente fúteis, que são forçados a dedicar-se a suas paixões de forma
quase clandestina para escapar do julgamento alheio, fãs de livros podem
disfarçar seu descontrole consumista como uma implacável sede de conhecimento.
O advento dos livros digitais tornou a vida do aspirante a bibliófilo ainda
mais fácil. Se antes era necessário enfrentar as barreiras do espaço, hoje uma
biblioteca de dezenas de milhares de exemplares cabe no bolso de qualquer
paletó, ou mesmo num celular. Um cartão de memória do tamanho da unha de um
dedão pode armazenar mais de trinta mil livros – um acervo equivalente feito de
papel exigiria um apartamento inteiro para abrigá-lo. O custo também deixou de
ser um empecilho. É possível encontrar uma infinidade de obras disponíveis
gratuitamente na internet, em domínio público, e o preço dos exemplares novos,
sobretudo os importados, é um convite à compra por impulso.
A escolha entre os livros
físicos e os digitais é uma questão de gosto, e um detalhe irrelevante diante
da meta de formar a biblioteca ideal. Na busca por esse objetivo, tanto os
fanáticos por tecnologia quanto os fetichistas do papel têm de se render aos
ensinamentos dos grandes colecionadores do passado. O tradutor e editor francês
Jacques Bonnet, dono de um acervo de mais de quarenta mil volumes, é uma das
maiores autoridades no assunto. Sua coletânea de ensaios Fantasmas na
biblioteca (Civilização Brasileira, 160 páginas, R$ 29,90), recém-lançada no
Brasil, reúne nove textos sobre seu amor pelos livros. Qualquer comprador
compulsivo de literatura deveria fazer o enorme sacrifício de acrescentá-la a
sua coleção. Com base nos ensaios de Bonnet, elaborei uma lista com suas sete
principais razões para viver entre livros. Elas valem tanto para quem já se
dedica à formação da biblioteca perfeita quanto para apenas gosta de livros, e
estava à procura de uma desculpa para transformar seu apreço em loucura.
1) O prazer da posse
Aprendemos a ler na
infância e, se conseguirmos escapar das inúmeras outras tentações que roubam a
atenção das crianças, é possível desenvolver desde cedo uma paixão pela literatura.
A compulsão por livros, porém, só chega mais tarde. Nossa velocidade de leitura
se mantém constante, o tempo dedicado a ela se torna escasso e passamos a
comprar mais livros do que somos capazes de ler. É uma decisão questionável, ao
menos do ponto de vista econômico. `Livros são caros na compra; não valem nada
na revenda; são caríssimos quando queremos encontrá-los e estão esgotados˜,
escreve Bonnet. O custo é compensado pelo prazer da sensação de posse. Mesmo o
exemplar não lido é, de certa forma, conquistado por seu dono. Ou, como diria
Bonnet, `também foram ‘lidos’ de um certo modo, estão classificados em algum
lugar do meu espírito como na minha biblioteca.” Apesar de prazeroso, o acúmulo
de livros não lidos é uma atividade que requer cuidado. Fantasmas na biblioteca
reproduz o aviso de Sêneca: `Que me importam esses inumeráveis livros e essas
bibliotecas, cujos proprietários, durante toda a vida, mal leram as etiquetas?”
Por mais que a compra compulsiva de livros seja bem-vista, a meta final deve ser
sempre a leitura, ainda que num futuro distante.
2) O flerte e a culpa
A falta de espaço ou de
dinheiro podem frear a expansão de uma biblioteca pessoal, mas o maior inimigo
do acúmulo de livros é a culpa. Quando a pilha de exemplares comprados e não lidos
cresce, até o bibliômano mais perdulário começa a se sentir culpado por seus
flertes. Felizmente, os ímpetos de racionalidade não costumam resistir a uma
visita à livraria, ou mesmo a alguns minutos diante do computador. Faço uma
confissão, certo de que meu caso não é o único. Num dia 31 de dezembro, ao
perceber que a quantidade de livros não lidos em meu leitor digital e em minha
estante seria suficiente para algumas décadas de leitura, prometi não comprar
livros durante o ano seguinte. A promessa foi quebrada antes do fim de janeiro,
quando o site de uma livraria anunciou uma promoção imperdível – a primeira de
muitas naquele ano. Descobri que a resistência a comprar novos livros só
aumenta o prazer de ceder à tentação. Os motivos que fazem um leitor se deixar
vencer pelo flerte são os mais variados. Bonnet revela que, em sua juventude,
comprou um exemplar de Lolita, de Nabokov, só porque gostou da capa, e se
rendeu a O lobo da estepe, de Herman Hesse, por causa do título misterioso,
mesmo sem conhecer o autor. Embora alguns livros sejam comprados depois de
longos namoros, a maioria chega às estantes graças a essas paixões à primeira
vista que, após a compra, se transformam em relacionamentos duradouros.
3) O apego inexplicável
Se compramos livros seguindo
critérios quase irracionais, cedo ou tarde nos tornamos vítimas de nossos
instintos e maculamos nossas coleções, grandes ou pequenas, com obras de baixa
qualidade. Isso nos força a escolher entre o prazer de possuir um livro, mesmo
ruim, e a vontade racional de passá-lo adiante e abrir espaço para outro
volume, mais adequado às nossas expectativas. Nessas batalhas contra a razão, o
desejo de preservação do acervo raramente é derrotado. “A escolha do que se
deve guardar ou rejeitar requer uma energia que eu sempre economizei”, diz
Bonnet. `Quem sabe se, no futuro, não terei necessidade de uma obra que, na
hora, achei medíocre?`
4) O bibliotecário em cada
um de nós
Os entusiastas do livro
digital têm, aqui, um trabalho (e um passatempo) a menos do que os admiradores
dos livros de papel. Em leitores digitais como o Kindle ou o Kobo, bastam
alguns cliques para organizar toda sua coleção por título, data de leitura ou
nome do autor. Os átomos são muito mais indóceis que os bits. Domar uma estante
de pequeno ou médio porte exige no mínimo uma tarde de trabalho. Organizar uma
coleção de milhares de volumes é uma tarefa para a vida inteira. Além do
esforço braçal necessário para remover os livros das prateleiras e
reorganizá-los, há o esforço intelectual de escolher entre vários critérios de
organização. Ao contrário dos arquivos digitais, os livros de papel aceitam uma
infinidade de classificações. Bonnet reproduz uma lista elaborada pelo
romancista francês Georges Perec. Segundo ele, é possível organizar os livros
por ordem alfabética (de título ou nome do autor), por continentes ou países,
por cores, por data de aquisição, por data de publicação, por formatos, por
gêneros, por grandes períodos literários, por línguas, por prioridades de
leitura, por encadernações e por séries. Em seguida, Bonnet expõe as falhas de
cada um desses critérios e volta a citar Perec: `Nenhuma dessas classificações
é satisfatória em si mesma. Toda biblioteca se ordena a partir de uma
combinação dessas classificações.`
5) A força dos hábitos
Os acumuladores de livros
podem ser divididos em dois grupos. Alguns tratam seus exemplares com
reverência. Outros encaram os livros como meros objetos de estudo e trabalho.
Os membros do primeiro grupo tentam manter ao máximo o estado de conservação das
obras. Ao abrir um volume da coleção de um deles (com a devida autorização do
dono, acompanhada de instruções de manuseio), é difícil notar traços de contato
com mãos humanas. Os elementos do segundo grupo são facilmente reconhecidos por
suas estantes cheias de exemplares castigados pelo uso e repletos de anotações.
Bonnet se enquadra no segundo grupo. `Escrevo em meus livros, a lápis, com
caneta hidrográfica ou esferográfica. Aliás, não consigo ler sem alguma coisa à
mão.` Os conservacionistas podem se gabar do fato de que suas coleções
sobreviverão por mais tempo. Os anotadores compulsivos têm o privilégio de
reler suas anotações anos depois de feitas, como recados ao leitor futuro numa
máquina do tempo.
6) Memórias e fantasias
Embora a presença opressora
dos livros comprados e não lidos iniba esse comportamento, é inevitável reler
alguns exemplares que insistem em sair da estante para a cabeceira. Ao abrir um
livro já lido, revisitamos não apenas as palavras do autor, mas também nosso
próprio passado. O estado de espírito que tínhamos na primeira leitura ressurge
na leitura seguinte, mesmo depois de muitos anos. Reler é discutir consigo
mesmo, e muitas vezes discordar de julgamentos do passado. Bonnet cita o
exemplo do escritor modernista Paul Morand, cujo estilo o encantara aos 20
anos, mas tornou-se insuportável numa releitura depois dos 60. Quem acumula
enormes pilhas de livros não lidos depara com outro prazer da memória, mais
melancólico: o de se emocionar pela primeira vez com um exemplar comprado há
muitos anos e imaginar o que teria sido diferente em sua vida se o tivesse lido
na primeira oportunidade. Quanto maior a lista de obras a ler, mais numerosas
são as vidas paralelas. Se suas leituras não têm qualquer influência sobre suas
decisões e seu modo de viver, você está lendo os livros errados.
7) O dom de esquecer
Por maiores que sejam as
estantes, ou o espaço nos discos rígidos, a tarefa de processar o conteúdo (ou
ao menos as capas e títulos) de uma coleção de livros cabe, em última
instância, à mente do leitor – um instrumento fascinante, mas pouquíssimo
confiável. Com o passar dos anos e o acúmulo dos livros nas prateleiras e na
memória, obras que lemos com atenção podem ser quase totalmente esquecidas.
Bonnet cita Pierre Bayard, autor de Como falar dos livros que não lemos, para
explicar essa fraqueza. “É, antes de tudo, difícil saber com precisão se lemos
ou não um livro, pois a leitura é o lugar do evanescente`, diz Bayard. Ao
conversar com outro leitor sobre um livro que já lemos, não é raro perceber que
deixamos de notar aspectos cruciais da obra, ou que apagamos trechos inteiros
da memória. Se escolhermos o texto certo e esperarmos tempo o bastante para que
a memória comece a nos trair, cada releitura da mesma obra pode ser uma
experiência totalmente nova. Mesmo quem vive entre quarenta mil livros é capaz
de perder-se num só.
Fonte: DANILO
VENTICINQUE - REVISTA ÉPOCA -
08/05/2013 - RIO DE JANEIRO, RJ
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