O BOM SAMARITANO: ícone da ternura evangélica
Pe. Adroaldo SJ
(Texto enviado por Irmã Marina Guilhermina de Oliveira.)
Reflexão:
“E
quem é meu próximo” (Lc. 10,29)
Teria sido fácil para
Jesus fornecer definições de “próximo”; se
não o faz é por-que quer evitar que se considere o “próximo” como um objeto de estudo ou de investigação. Perante a pergunta
inicial, Jesus não assume o papel que o escriba lhe propõe e, em vez de dar-lhe
a resposta pedida, indica onde deve buscá-la: Jesus quer tirá-lo do mundo do saber
para levá-lo ao do fazer.
O ícone do “bom
samaritano” apresenta o próximo “em situação”, o pró-ximo concreto,
histórico, que interpela e compromete cada um em escolhas de-cisivas, em
relação às quais se demonstra se é ou não “próximo” do neces-sitado. Por isso,
a interrogação inicial se inverte: já não se trata de perguntar-se “quem
é meu próximo?”, mas “de quem eu sou próximo e como eu chego a
ser próximo?” O “próximo”
não é somente o outro para mim, mas eu
para o outro.
O “próximo”,
no sentido expresso pela parábola, não pode nos deixar indiferentes; provoca
uma respos-ta, compromete em uma ternura concreta, oblativa, capaz de risco,
para socorrer o ferido.
A conclusão da parábola é um
programa de vida. Jesus não diz: “agora, sabes, podes ficar
tranquilo”.
Afirma antes: “Agora vai, e também tu faze o mesmo”.
Neste ícone, temos a magna
carta da ternura como resposta do
discipulado e forma de atualização concreta do amor evangélico.
Os personagens
da parábola: um homem, assaltantes, um levita, um sacerdote, um samaritano;
todos, exceto “um homem”, aparecem designados por sua função social:
uns com prestígio e outros no mundo marginalizado (assaltantes, samaritano).
“Um homem”, sem mais
especificações, representa cada ser humano, para além de suas conotações de
nacionalidade, de nível social, de religião; é cada ser humano necessitado,
carente, vítima... A novidade do evangelho consiste precisamente na superação
de tais barreiras.
Na parábola, o desconhecido ocupa o centro do
relato, visto que todos os demais personagens aparecem em relação com ele: os
bandidos o assaltam, despojam, golpeiam e o abandonam; o sacerdote e o levita
vêem-no e passam ao largo; o samaritano o vê, comove-se, aproxima-se, cuida
dele. Até quando é levado à hospedaria continua sendo o pólo das atenções. Essa
organização do movimento no espaço em torno de um homem reduzido à impotência
indica seu papel central, mesmo que dentro de sua passividade. Todos os
personagens se definem a favor ou contra ele: é assaltado, despojado,
espancado, deixado semimorto, comiserado, enfaixado, conduzido, cuidado... De
viajante passa a corpo inerte e, abandonado por uns, reencontra vida graças a
outro.
O samaritano avista ali, no caminho, um
homem, e um homem em perigo de vida; que fosse de outro povo ou outra religião,
é irrelevante. O bom samaritano vai além dos dados de ordem social, moral ou
religiosa; avista, para além das diferenças, um ser humano igual a ele, e por
isso irmão.
Para o sacerdote
e para o levita, o homem ferido converte-se
em obstáculo a evitar: seguem adiante pelo outro lado.
As
normas de pureza proibiam-lhes contaminar-se pelo contato com a morte, visto
que deviam manter-se puros a fim de participar do culto.
O samaritano não se
deixa condicionar pela “prudência” de continuar o caminho,
nem pelo medo de se aproximar do
ferido; ao contrário, se detém e se envolve na situação do ferido: “Viu-o
e teve compaixão” (sentimento
que aparece na Bíblia referindo-se somente a Deus e a Jesus); assume o risco do
encontro e se deixa interpelar pela necessidade do outro, cuja vida, para ele,
conta mais do que prosseguir sua viagem.
Existem, portanto, duas maneiras de ver:
permanecer alheio ou comprometer-se.
O sacerdote e o levita não mudam, a não ser passar pelo outro lado; tal atitude os faz aliados dos bandidos sob o signo
da exclusão: saem do relato sozinhos, limitados a seu projeto, excluindo o
outro.
O samaritano “viu-o” e foi afetado pelo que viu;
isso evoca já um modo diferente de olhar o outro, não como um estranho
ou com indiferença, mas como um “próximo” para servir com amor.
O termo “compaixão” revela um forte compromisso afetivo como “um
comprimir-se do coração” e denota uma íntima participação na situação do ferido, um “com-partilhar”
que se faz solidariedade.
O samaritano não
organiza um socorro à distância, não se afasta em busca de reforços, mas ele
mesmo põe mãos à obra, interessando-se pessoalmente pelo ferido e fazendo-se
cargo de sua situação: com suas mãos o medica e enfaixa as feridas, o levanta e
o carrega sobre sua cavalgadura; caminha ao lado por quilômetros e quilômetros
e o entrega ao administrador da pousada.
Há, em todos estes gestos,
uma “com-participação”,
uma atenção pessoal que exprime a autenticidade da ternura evangélica. O samaritano realiza atos concretos e o faz com
ternura transbordante, até ao excesso;
ele vai além do simples apelo do dever.
Ninguém
poderia ter-lhe pedido tanto. Detendo-se, curando o ferido e conduzindo-o ao
lugar de descanso, ele já tinha cumprido seu essencial dever de justiça e podia
sentir-se satisfeito. Mas, ele sente a neces-sidade de ir além. Sua ternura é verdadeiramente completa,
genuína, sem interesses nem meio-termo: é uma ternura de puro dom, gratuita, uma ternura de benevolência.
Com justiça, os padres da Igreja
gostavam de destacar que o primeiro grande Samaritano
fora o Filho de Deus feito homem. Ele, em primeiro lugar, se deteve
misericordiosamente junto a nós pecadores, descen-do de sua “cavalgadura”
e fazendo-se nosso companheiro de viagem.
A “opção de vida” em favor do próximo
é o indicador de uma vida aberta aos outros e comprometida na construção de uma
convivência social na qual predomine a ternura
e não a dureza de coração, o respeito à vida e o amor e não a violência e a
exclusão.
Segundo a teóloga Maria José Torres “a
parábola do samaritano tem consequências ético-políticas”.
Nossa compaixão deve estar perpassada de indignação ética,
porque não há compaixão sem justiça. Daí apostar pelo modelo compassivo do
cuidado.
Para voltar às raízes da fé, devemos
reivindicar a compaixão como sinal
de identidade do humano e do divino, porque parecer-se com Deus implica ser e
atuar compassivamente. Deus tem entranhas de mãe e se comove por seus filhos
mais sofredores, vítimas da maldade humana.
A parábola é uma exortação à
misericórdia e à denúncia. Meu próximo não é só o que merece minha
ajuda, mas também aquele que merece ser denunciado porque dá uma volta e deixa
as coisas como estão.
Texto
bíblico: Lc 10,25-37
Na oração:
Os personagens da parábola podem
servir-nos de espelhos: talvez possamos sentir-nos como o
escriba cético que
pergunta: “Quê devo fazer?”, sem contudo, comprometer nossa vida; ou como o sacerdote
e o levita,
tão preocupados em chegar ao culto que não nos sobra tempo nem atenção para o
homem ferido jogado na sarjeta. Os três aparecem distraídos e dispersos em seus
próprios projetos, planos, ocupações ou reflexões, querendo conhecer, no plano
teológico, quem é o próximo, cumprir a Lei, chegar ao Templo, não contaminar-se
com um cadáver...
No
entanto, tudo isso os impede de viver centrados no essencial que, naquele
momento, era atender ao homem ferido. O samaritano, ao contrário, aparece
descentrado de si mesmo; é todo atenção solícita e eficaz no serviço do
desconhecido que encontra em seu caminho, e isso o faz entrar em sintonia com o
desejo e o coração de Deus.
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